"Ai
do homem que não cultiva santas nostalgias."
Aquelas tardes-noites ainda me vêm como retratos num velho álbum de família. A noturna No.2 de Chopin lhe enchia o peito e seu olhar, olhos de um verde tão vivo, perdia-se no vazio da sala até que uma lágrima lhe rasgava a face. Não era de tristeza, eu sei. Cada nota estremecia sua alma, sua alma de menino, alegre a jogar, a pintar, a amar. Você deslizava seu pé esquerdo enquanto Chopin passeava os dedos no piano. Você fez de seu pé esquerdo sua alma e seu coração. Sua canhota tinha mais redenção, poesia e paixão que a de qualquer outro homem, seja ele Maradona ou Rivellino.
Ah, Brown... Lembra-se de
quando fomos assistir ao nosso time jogar? Jamais vi um sorriso tão doce e
pleno como o seu naquele dia. E nem ganhamos a partida, pelo que me recordo.
Mas isso não importa para nada. Você estava feliz como um menino que vê o pai entrar novamente pela
porta depois de anos na guerra. E nem precisou que fôssemos tomados pela euforia extasiante e fugaz de um gol para que nos abraçássemos forte. Sim, e te abracei forte, e
gritamos e gargalhamos como dois irmãos.
Sinto sua falta, Brown. Sinto falta das nossas conversas sobre coisas sem importância - você certamente se lembrará das
piadas que contávamos um ao outro -, de quando tomávamos uns tragos escondidos, rindo da nossa própria tolice. Lembrar-se-á também de quando falávamos
sobre política, e você fazia cara séria, de reprovação. Jamais me esquecerei
que só de balbuciar o nome daquela garota suas bochechas ganhavam um rubro envergonhado, inocente, e você sorria bobo como os homens que descobrem o amor.
Cá estou, amigo Brown, escutando
repetidamente a noturna No.2, lembrando daquelas tardes-noites... Só que agora
é sobre a minha face que a lágrima desliza. Não é de tristeza, você sabe. E só você sabe.
* Amanhã, sete de setembro, faz 31 anos que o pintor e poeta Christy Brown morreu, na Inglaterra, aos 49 anos. Sua história inspirou o belíssimo Meu pé esquerdo.